60 anos de 64 – Remoendo o passado para que nunca mais se repita

Por Ricardo Noblat – Portal Metrópoles

Digamos que não foi golpe o golpe militar que derrubou o presidente João Goulart no final de março de 1964. Nem ditadura a ditadura que se estabeleceu durante 21 anos.

Então, por que nesse período foram mortos e desapareceram pelo menos 423 opositores do regime? Por que milhares de pessoas foram torturadas e 6 mil militares punidos?

Por que crianças foram seviciadas na frente dos seus pais para que eles confessassem supostos crimes? Por que algumas foram entregues para serem criadas por famílias de militares?

Por que censores, que passaram a dar expediente nas redações de jornais e revistas, proibiram a divulgação de notícias? Escondeu-se até uma epidemia de meningite.

Por que letras de músicas, filmes, peças de teatro e novelas de televisão não puderam ser cantadas nem exibidas? Os militares, quando ouviam falar em cultura, sacavam as armas.

Por que as autoridades proibiram passeatas de protesto e prenderam manifestantes? Por que padres estrangeiros foram presos, torturados e devolvidos aos seus países de origem?

Por que o Congresso foi cercado por tropas armadas e fechado mais de uma vez? Por que mandatos de parlamentares foram cassados e alguns deles tiveram que se exilar?

Por que foram suspensos os direitos da magistratura e aposentados os juízes considerados incômodos ao regime? Por que castraram os direitos civis antes assegurados em lei?

Por que o governo pôde perseguir e prender quem quisesse independente de ordem judicial? Por que o habeas corpus deixou de valer durante longos anos?

Por que os brasileiros não puderam votar para eleger o presidente da República? Por que cinco generais, e uma junta militar, se sucederam na presidência da República?

Por fim, por que o governo editou uma lei de anistia que beneficiou políticos cassados, exilados, banidos, mas também autores de crimes de sangue como mortes e torturas?

Se nada disso caracteriza uma ditadura, o que mais precisaria ter acontecido para que pudéssemos chamar de ditadura a ditadura que existiu no país entre 1964 e 1985?

Em várias partes do mundo, governos evitam celebrar aniversários de tempos tenebrosos. Os aniversários só são lembrados pelas vítimas da ignomínia.

Aqui será assim outra vez, e logo quando o país é presidido por um ex-líder sindical alvo no passado da ditadura e, há menos de um ano e meio, de uma intentona que fracassou.

Um aliado dos carrascos de 64, desta vez por meio do voto, chegou ao poder no Brasil em 2018. Ao invés de se ajustar às regras da democracia, atentou contra elas e quis dar um golpe.

Bolsonaro acabou golpeado pelos que apoiaram sua eleição. Ele foi um atalho do qual se serviram os órfãos da ditadura de 64 para voltar ao poder sem disparar um só tiro.

Os órfãos continuam órfãos e ressentidos. Não baixaram as armas nem as baixarão. O atalho virou um bagaço. Só falta jogá-lo no lixo. Mas está demorando muito.