Famílias pobres foram enganadas e pagaram para receber cisternas

Da Folha de S. Paulo — Famílias pobres que vivem em comunidades isoladas no semiárido mineiro tiveram de pagar para serem beneficiadas pelo Programa de Cisternas do governo federal, cujo orçamento já incluía todas as despesas relacionadas.

O contrato, de R$ 15 milhões, previa a instalação de 3.012 cisternas em cinco municípios contemplados por um convênio firmado entre o Consórcio Inframinas, que reúne prefeituras da região, e o então Ministério da Cidadania, ainda durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).

A partir do convênio, uma entidade privada sem fins lucrativos com sede em Alagoas, a Ceapa (Central das Associações de Agricultura Familiar), foi contratada para executar as obras. O convênio, porém, não previa contrapartida das famílias beneficiárias, uma vez que elas vivem em situação de vulnerabilidade social.

Enganados, os moradores disseram à reportagem que precisaram pedir dinheiro emprestado para bancar parte da construção das cisternas —tecnologia social que armazena água da chuva para consumo.

Algumas desistiram de participar do programa por causa da dificuldade financeira.

Após questionamento da reportagem na última semana, o ministério, rebatizado de Integração e Desenvolvimento Regional com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva no dia 1º, informou que, diante da gravidade do caso, iria suspender a entidade responsável pela cobrança.

A direção da Ceapa disse à Folha que cobrou a contrapartida dos moradores porque considerou inicialmente que as prefeituras iriam arcar com parte dos custos das obras. Como não houve essa contribuição, disse, se viu obrigada a pedir a participação dos beneficiários.

Após questionamentos, afirmou que passou a ressarcir os beneficiários.

Entre os moradores que tiveram que assumir os custos está o casal Eva Pereira Silva, 54, e Antônio Aguimar da Silva, 60, de Vertente, uma das comunidades isoladas de Coração de Jesus (a 450 km de Belo Horizonte), município contemplado pelo convênio.

Eles deixaram de investir R$ 870 que emprestaram do banco na plantação de capim e preparação do solo, tendo em vista a criação de animais, para acessar o Programa de Cisternas.

O dinheiro acabou sendo usado na compra de cinco metros de areia lavada e na contratação de um ajudante de pedreiro que pudesse abrir um buraco no solo —cujo espaço servirá para acomodar a cisterna de 16 mil litros.

Essa foi a condição estabelecida pelos representantes do convênio para que as famílias entrassem no programa.

Além de comprar a areia e, em alguns casos, complementar o material com alguns sacos de cimento, as famílias tiveram que trabalhar como ajudantes do pedreiro contratado pela empresa e fornecer a alimentação dele.

Quem não tivesse condições de fazer o serviço, por alguma questão de idade ou saúde, deveria pagar um servente.

Para economizar tempo e dinheiro, o casal Silva acabou pegando na enxada e ajudando a terminar a escavação. Quando a reportagem da Folha esteve na casa deles, em novembro passado, fazia quase quatro meses que eles haviam comprado a areia e pouco mais de um mês que haviam aberto o buraco.

Só que, até a publicação desta reportagem, a cisterna não havia sido construída e parte da areia já havia ido embora com a chuva.

A reportagem ouviu mais dez famílias em comunidades isoladas de Coração de Jesus e São João da Lagoa. Todos confirmaram a cobrança de contrapartida.

Entre as famílias ouvidas há os que já abriram o buraco e estão à espera das cisternas, os que pediram dinheiro emprestado para arcar com as despesas e os moradores que não tiveram condições de entrar com a contrapartida e foram excluídos do programa.

“Só o frete para trazer a areia até aqui é R$ 400, e cada metro de areia custa R$ 150. Como é que você vai pagar quatro metros e meio de areia? Fica caro demais. Aí eu falei: vamos desistir”, lamentou o morador José Antônio Pereira da Silva, 27, que vive com a mulher e três filhos pequenos na comunidade Mocambo 2, em Coração de Jesus.

Apenas R$ 200 seriam depositados na conta das famílias beneficiárias para arcar com a despesa da alimentação. A contrapartida foi anunciada em reuniões que ocorreram nas comunidades.

Segundo moradores de Coração de Jesus, essas reuniões ocorreram entre meados de julho e setembro, na presença do prefeito, Robson Adalberto Mota Dias (PL), o Robinho Dias, e do seu irmão, Ronaldo Soares Mota Dias, que já foi prefeito de São João da Lagoa e Coração de Jesus e é secretário-executivo do Consórcio Inframinas. Outro irmão, Carlos Alberto Mota Dias (PL), é prefeito hoje de São João da Lagoa.

O Ministério da Cidadania ficou responsável por quase a totalidade do convênio, de R$ 15 milhões. No sistema Mais Brasil, do governo federal, consta que R$ 12,6 milhões desse montante já foram desembolsados.

O convênio é um dos 11 divulgados em um edital de justificativa para dispensa de licitação publicado pelo Ministério da Cidadania em 2021. Desses, apenas seis foram para frente.

A dispensa de concorrência pública foi justificada pela condição de extrema pobreza do público atendido pelo programa. Segundo o próprio edital de justificativa, 647 mil famílias rurais não contam com nenhum meio adequado de acesso à água no semiárido.

As prefeituras e consórcios de municípios que firmaram os convênios ficaram responsáveis por contratar as entidades que construiriam as cisternas.

Essa contratação deveria ocorrer por meio de chamamento público (procedimento feito pelo poder público para executar projetos em parceria com ONGs ou entidades privadas sem fins lucrativos).

Apenas as entidades credenciadas no Ministério da Cidadania poderiam concorrer. Há pelo menos 151 entidades credenciadas, sendo 10 em Minas Gerais.

O termo de contrato de prestação de serviço, firmado pelo Inframinas, diz que a Ceapa deveria “disponibilizar os recursos físicos, humanos e materiais necessários para garantir a perfeita execução dos serviços”, entre outras atribuições. Em nenhum momento o contrato fala que o público beneficiário deve contribuir financeiramente.

Segundo Márcia Muniz, membro do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais —organização que participou do Programa de Cisternas na Bahia desde os anos 2000—, as famílias não devem assumir nenhuma despesa nesse tipo de ação.

Nas comunidades do interior mineiro, moradores ouvidos pela reportagem não participaram de nenhuma seleção para obter o benefício.

Os que compareceram às reuniões com representantes da Ceapa ficaram sabendo informalmente por meio de grupos de WhatsApp ou por algum vizinho. Os que já receberam as cisternas disseram que não passaram por capacitação para fazer o uso adequado da água.

Em audiência que ocorreu em novembro na Câmara de Coração de Jesus, o vereador Gleisson Ferreira Leite (Patriota) comentou que foi procurado por aproximadamente 20 famílias que estavam com dificuldades para bancar o valor exigido pela entidade.

“Quando vi a plaquinha na cisterna, estava escrito Água Para Todos, Governo Federal, Pátria Amada Brasil. Mas que ‘Pátria Amada Brasil’ é essa que a pessoa tem que pagar metade?”, comentou o vereador.

José Romildo da Silva Soares, um dos moradores ouvidos pela reportagem, disse: “Na primeira reunião, eles falaram que tinha que pagar. Na segunda, o povo perguntou o porquê. A justificativa deles foi a de que no Nordeste, onde eles estão acostumados a construir essas caixas, tem a areia lavada e em Minas não tem”.

Após a visita da reportagem ao local e discussão do caso na Câmara Municipal de Coração de Jesus, a Ceapa reuniu moradores de algumas comunidades e prometeu ressarcir a contrapartida exigida. Moradores disseram que receberam R$ 700 —o que já inclui os R$ 200 prometidos para bancar a alimentação do pedreiro. O valor, porém, não cobre todas as despesas que as famílias tiveram.

A Ceapa enviou à Folha na última semana nove comprovantes de ressarcimentos.